JOHN BURCHELL

O artista esquecido que desenhou a Baixada Fluminense no século XIX

Guilherme Peres
Pesquisador do Instituto de Pesquisa e Análises Históricas da Baixada Fluminense - IPAHB
Sócio fundador da Associação de Amigos do Instituto Histórico da Câmara Municipal de Duque de Caxias
Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico de São João de Meriti
Sócio fundador e pesquisador do grupo de pesquisa Amigos do Patrimônio Cultural



O Brasil foi, desde o primeiro século do descobrimento, fonte de curiosidade dos viajantes estrangeiros que por aqui aportavam em busca do novo, do deslumbrante, do exótico, do desconhecido.
Interminável a lista desses visitantes, que a partir do século XVI começaram a chegar, deixando relatos sobre as atividades de índios, negros e brancos formadores de nossa cultura: André Thevet, Jean de Lery, Antony Knivet, Hans Staden, Fernão Cardim, Pedro de Magalhães Gandavo e outros.
Entretanto, é a partir do século XIX, com a abertura dos portos e tangidos pelo surto da revolução industrial na Europa, que esses cronistas viajantes, e até pintores e desenhistas, transformaram a simples curiosidade em fonte de pesquisas científicas com valiosos registros de caráter botânico, geográfico, geológico, antropológico e etnográfico como: Jonh, Luccock, Jonh Mawe, Henry Coster, Saint-Hilaire, Debret, Spix e Martius Maria Graham, Rugendas, Daniel Kider, entre outros. Alguns com trabalhos artísticos de grande importância documental.

Porém, existe um que não é citado nas várias historiografias desses visitantes: William John Burchell. Nascido na Inglaterra em 1871 formou-se em botânica e em 1803 foi aceito como membro na Linnean Society de Londres. Durante quatro anos explorou a vasta região da União Sul Africana, voltando para seu país com grande coleção da flora, centenas de desenhos e grande número de “observações astronômicas e matereológicas”.
Influenciado por outros viajantes, resolveu conhecer o Brasil. No porto de Portsmouth, embarcou no navio Wellesley, em 15 de março de 1825 junto com a missão de Sir Charles Stuart, que veio a esse país com a missão de negociar o reconhecimento da nossa independência. Ao costear a península Ibérica, detiveram-se em Portugal por dois meses, onde Burchell aproveitou para desenhar e familiarizar-se com a linguagem.
Aportaram no Rio de Janeiro em 18 de julho do mesmo ano, demorando-se nesta cidade até setembro de 1826. Penetrando a Baixada Fluminense, nesse período, deixou uma série de desenhos que registram o Porto da Estrela, a sede da fazenda da Mandioca, pertencente ao barão de Langsdorff, naturalista e cônsul da Rússia no Brasil, e uma falua subindo as águas calmas do Rio Inhomirim com sua vela inflada ao sabor do vento.

Mas de todos esses desenhos, alguns já registrados pelo lápis de artistas famosos que também ali estiveram como Debret, Thomas Ender, Rugendas e Victor Barrat, surpreende-nos a desconhecida “Ponte Coberta”. Nele vemos negras escravas lavando roupa à margem de um rio, próximo a uma ponte coberta de telhas, notando-se ao fundo a torre de uma igreja, que o viajante brasileiro José da Cunha Mattos, assinalou em seus apontamentos que, ao aproximar-se da Fazenda da Mandioca atravessou uma ponte coberta, e que ali existia “uma igreja de Nossa Senhora da Conceição”. Burchell teria passado por essa fazenda em direção a Raiz da Serra dos Órgãos, até alcançar - para uma visita - a fazenda Santa Ana do Paquequer, do inglês George March, na futura Teresópolis, através de Santo Aleixo e Magé.
A falta de desenhos registrando sua presença na região da Serra dos Órgãos entre os dias 6 e 24 de fevereiro de 1826, é explicado por Gilberto Ferrez no prefácio de seu álbum de desenhos. Segundo ele, por ser estação chuvosa, o trabalho do artista tornava-se quase impossível naquela região tão bela, “vista da casa de March, das Araras, ou do Alto da Boa Vista”.
Durante quase cinco anos Burchell, viajou pelo interior do Brasil colhendo e catalogando amostras minerais e botânicas, registrando através de desenhos aspectos humanos e principalmente arquitetônicos com notável acerto de perspectiva e proporções, de igrejas, praças, arruamentos, sobrados etc. Legando para a posteridade raro acervo iconográfico, constando de 257 desenhos “do mais alto valor histórico e arquitetônico”, além de 33 pranchas sobre botânica e zoologia.



De volta à Inglaterra, com esse farto material artístico e científico, sentiu-se desprezado pelo governo, que demonstrou pouco interesse pelo seu trabalho. Com centenas de amostras botânicas e minerais classificadas e catalogadas, acompanhadas de inúmeros desenhos, não encontrou o apoio esperado para a publicação. Preterido por outros cientistas com trabalhos de menor valor, cansado e doente, suicidou-se no dia 23 de março de 1863. Desapareceu uma vida, mas sua obra artística permaneceu. Lamentavelmente seus diários de viagem nunca foram encontrados.


COMENTÁRIOS


É ainda Gilberto Ferrez quem nos fala sobre o Porto da Estrela, prefaciando seu álbum de desenhos: “Até então tínhamos as aquarelas do austríaco Thomas Ender como as melhores quanto a representação da arquitetura brasileira desse período. Agora, ao compara-las com o acervo deixado por Burchell, temos que reconhecer que este é superior aquelas, graças a meticulosidade com que reproduziu detalhes, sem falarmos na região retratada que é bem mais ampla e variada. Outra particularidade e das mais importantes, é das proporções e perspectivas serem absolutamente corretas, a tal ponto que o belo desenho de Rugendas do Porto da Estrela, ao ser comparada com o de Burchell, não passa de uma fantasia romântica do lugarejo”.
Ao observar essa magnífica “aguada” do porto citado por Ferrez, vemos que aparecem à esquerda do Rio Inhomirim um grande casarão aberto, abrigando extensos troncos de madeira, tendo ao lado um barco sendo construído ou reformado, aparentando ser um pequeno estaleiro. À direita, vê-se um rancho para abrigar tropeiros e mercadorias, cercado de inúmeros animais de cela pastando, pertencentes às tropas. “É um edifício muito comprido divido em cubículos por paredes de taipa, em frente do qual um teto prolongado forma uma grande varanda cujas pilastras são de tijolos”, diz outro viajante, Auguste de Saint-Hilaire.

Na abertura do álbum, aparece o auto-retrato de Burchell desenhado de frente, ostentando uma cartola com a aba em desalinho, encobrindo parte de uma abundante cabeleira. Abaixo dos olhos brilhantes aparece um grosso bigode que dá continuidade a uma extensa barba, encobrindo o pescoço até a altura de um laço de escoteiro. Sobre os ombros, um dólmã de gola alta completa o vestuário.

Mais adiante, um desenho a lápis que Ferrez chama de “Fazenda do Senhor João Antonio”. Em frente a ela aparece, sobre uma frágil ponte atravessando o leito do Rio Caioba, uma figura com cartola, que este diz ser o próprio Burchell. Ao fundo, o magnífico penhasco da Serra do Frade.

Também a lápis, aparece a sede da Fazenda da Cordoaria, que erroneamente Gilberto Ferrez afirma ser “A bela fazenda de Paulo Moreira, próxima de Mandioca”. Essa fazenda foi comprada pelo Primeiro Império, para instalação da Imperial Fábrica de Pólvora.

Em sua História, não foi encontrada a data de sua construção; entretanto, quando a fazenda foi adquirida à viúva de Antonio Ribeiro das Neves, pelo coronel João Antonio da Silveira Albernaz em 1804, o sobrado já existia, conforme consta na escritura de venda da fazenda, relatando a existência de “uma residência de sobrado com vários trastes dentro dela, e um oratório com alguns trastes”. Na frente, vê-se uma grande varanda, que se alcançava por uma escadaria reta de pedra, depois substituída por duas laterais, quando se tornou sede da Fábrica de Pólvora.



REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS



SAINT-HILAIRE, Auguste de – “Viagem às nascentes do Rio São Francisco”.Ed. Brasiliana – 1937 – SP

AZEVEDO PONDÉ, Francisco de Paula e – “O Porto da Estrela”. RIHGB – Volume 293 – 1971. DIN – RJ.

FERREZ, GILBERTO – “O Brasil do Primeiro Reinado, visto pelo Botânico John Burchell”. Fund. João Moreira Salles / Nacional Pró-Memória, 1981- RJ